Ao invés de fazer uma crônica sobre a cidade, hoje colocarei um conto que foi publicado na Antologia de Natal, da editora Aerdna. Confira:
Era Natal. Mas num país tropical, não há neve no quintal. Nem botinha na lareira. Nem chaminé. Nem muitos presentes embaixo da pequena árvore enfeitada apenas com algodão, um pisca-pisca com metade das lâmpadas queimadas, e umas bolas descascadas.
Na verdade, mal havia um teto. Mas havia muitos baldes. Ao andar pela casa, quase se tropeçava neles, pois como chovia muito em dezembro, poucas telhas resistiram ao mau tempo.
Madalena, contudo, resistia há 34 anos. Para ela, tempo ruim não era uma opção. Enfrentava tempestades e secas longuíssimas para conseguir sobreviver com seu salário mínimo.
Ela não gostava do Natal, pois só a lembrava de todas as coisas que não poderia comprar, da ceia que não poderia ofertar e dos presentes que não iria ganhar.
Também não suportava o espírito natalino. Por que a caridade, o perdão e o arrependimento só afloravam no final do ano? É tão fácil fingir o que não se é por um dia, ao invés de se esforçar pelo resto do ano…
Além do mais, quando a vida não lhe sorri nenhuma vez, fica difícil acreditar em mudanças, em milagres. Mas bem que gostaria de ter essa fé inabalável para tolerar cada dia, pelo menos haveria um conforto nessa falta de explicação e abundância de questionamentos.
Mas há muito que parara de contestar também. Do que adiantava? Estava viva. Embora a vida lhe fosse um presente que não pediu e não pôde recusar, teria que continuar se virando. Ou poderia acabar com aquilo.
Nunca havia pensado em suicídio, mas até que fazia sentido. Na falta de sentido na vida, com um dia igual ao outro, uma sucessão de falta de perspectivas e monotonias infindáveis. Por que não?
Precisava de um sinal que a persuadisse do contrário. Precisava de um milagre, pensou amarga.
A verdade é que às vezes, tudo o que precisamos é de um pequeno milagre, e este normalmente se apresenta disfarçado, surgindo quando a gente menos espera.
Com Madalena, ele literalmente bateu a sua porta.
Pronta para xingar quem lhe ousava perturbar o sono às 3h da manhã de uma véspera de Natal, abriu a porta. Olhou para os lados e não viu ninguém. Ficou olhando aquela caixa embrulhada com papel de presente. Curiosa a levou para dentro.
Será que era de um admirador? Ou sua família havia mandado um presente pelo correio? Mas quem que faz entrega a uma hora dessas?
Como uma criança ávida para ver o que tinha dentro, rasgou o embrulho e se deparou com um caixinha menor. Abriu e viu um par de óculos.
Mas não tinha problema de visão, quem mandaria um par de óculos para ela? Experimentou-os e pareciam de camelô. As lentes não eram escuras e tampouco eram de grau. O que faria com aquilo?
Decepcionada, deixou-os de lado e foi dormir.
Ao acordar olhou para os óculos e resolveu usá-los. Afinal havia sido um presente, o único que havia ganhado, então lhes daria uma chance.
Foi ao supermercado e na fila, ao olhar para a mulher em sua frente, os óculos começaram a mostrar flashs da vida daquela estranha. Em poucos segundos descobriu que aquela loira, alta, arrumada e de boa aparência havia perdido toda a sua família e lutava contra uma doença. Olhando para ela, ninguém diria.
Ficou surpresa e maravilhada com aqueles óculos mágicos e passou a observar cada rosto que encontrava na rua. “Foi traído pela mulher”, “perdeu tudo e decretou falência”, “rica, mimada, e havia tentado se matar duas vezes”, “endividado por causa de vícios”, “infeliz no trabalho”, “sem dinheiro o suficiente para dar um presente melhor ao filho”. Os problemas que cada rosto escondia, aos poucos eram revelados por aquelas lentes.
Ao ver que todos, sem exceção, carregavam uma cruz, se sentiu melhor consigo mesma. Depois se sentiu culpada por se regozijar com a desgraça alheia. Mas não deveria se recriminar por isso. Madalena era apenas uma pessoa comum e ao ver que a vida dos outros também não era uma maravilha, se sentiu menos só. O sorriso que brotou eu seu rosto mostrava apenas que era humana, tão falha quanto todos os outros.
Ao tirar os óculos, percebeu que enxergava melhor. O mundo e as pessoas agora passavam de um borrão e começavam a se ajustar aos seus olhos. Ou seriam os seus olhos que se ajustavam a elas?
Colocou-os, então, de volta à caixa e guardou dentro do armário. Nunca saberia da onde teriam vindo e quem a havia presenteado, mas não fazia diferença, porque, às vezes, tudo o que precisamos é de um pequeno milagre. E um milagre pode assumir diversas facetas.
Pode ser uma chuva após um longo período de seca. Pode ser uma aspirina para uma dor que parece não ter fim. Pode ser o curvar dos lábios num sorriso depois do pranto. Pode ser o se fazer presente em meio a tanta ausência. Pode ser encontrar um par de olhos que realmente te enxerguem em meio a tanta gente. Pode ser o coração voltar a bater depois de ter sido partido tantas vezes. Pode ser um quem ou o quê.
E Madalena percebeu, sem a ajuda do poeta, que “quando nada acontece, há um milagre acontecendo que não estamos vendo”. Mas agora ela via. Afinal, tudo o que precisava era de um pequeno milagre.