Existe um velho ditado que diz que “tudo depende do ponto de vista”. Embora esta máxima tenha se tornado um lugar-comum, ela não é menos verdadeira por isso. Onde muitos enxergam escombros, destroços e lixo, outros enxergam possibilidades, transformações e renovação.
Esse é o caso do bombeiro e luthier Davi Lopes que utiliza madeiras encontradas em incêndios como matéria-prima para fabricar novos instrumentos. Duas de suas criações estão presentes no novo show de Paulinho Moska, “Os Violões Fênix do Museu Nacional”, que se apresentou no Teatro Imperial neste último domingo (27).
Antes do show, o público assiste aos 15 primeiros minutos do documentário “Fênix, o voo de Davi”, disponível na íntegra no Globoplay, para mergulhar na história que será contada ao longo do show, que conta com um repertório repleto de sucessos, tocados nestes dois violões que foram feitos com pedaços de madeira do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
O tema “renovação” está presente logo no início, que tem “Tudo novo de novo” como música de abertura. Em seguida, “A seta e o alvo”, “Lágrimas de diamantes”, “Que beleza, a beleza”, “Tudo que acontece de ruim é para melhorar”, “Namora comigo” e “Estou pensando em você” arrancaram coros da plateia.
Ao anunciar que o bombeiro Davi estava presente, o restante da plateia se levantou e o aplaudiu, fazendo uma justa homenagem a esse herói que salva não só vidas, como também pedaços da nossa história.
A música “trilíngue” Waiting for the sun to shine, composta em parceria com o músico argentino Kevin Johansen também esteve presente no repertório, que contempla ainda composições de outros artistas. Fã de Gilberto Gil, Moska canta “Refazenda” e a dedica à Preta Gil, que faleceu no último domingo, além de “Sentado à beira do caminho”, de Roberto e Erasmo Carlos, “Quem sabe isso quer dizer amor”, de Milton Nascimento e “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho, que encerrou o show.
Contudo, antes de ir embora, Paulinho atendeu a pedidos da plateia e cantou “Somente nela” e “Um móbile no furacão”, além da inédita “A dor traz o presente”, que tem melodia de Pixinguinha.
AeP: Como surgiu essa ideia de construir os violões a partir das madeiras resgatadas do incêndio que destruiu o Museu Nacional? Como você ficou sabendo dessa iniciativa?
Paulinho: Dois anos antes de o Museu pegar fogo, eu conheci um personagem maravilhoso, o bombeiro Davi Lopes. Meu amigo jornalista Vinícius Dônola estava fazendo uma matéria com ele e me ligou pedindo um favor, que era testar violões construídos por Davi (que além de bombeiro, é luthier). Achei a história dele muito interessante. Como ele apaga fogo e constrói violões, ele costuma pegar as madeiras queimadas que estão indo para o lixo. Às vezes, ele encontra um cedro, uma jacarandá numa mesa, numa cadeira, pega e leva para a casa.
A coisa mais cara num instrumento é a madeira, as nobres então são muito caras. Ele economiza muito recolhendo essas madeiras das casas incendiadas. Escutei essa história e a achei linda, então topei testar os violões.
Eu pensei que iam chegar violões bem “médios”, bonitos pela história, mas sem toda aquela preparação que normalmente acontece, mas o que chegou foram três instrumentos de altíssima classe. Eu os toquei e imediatamente queria comprá-los, mas já haviam sido vendidos. Então encomendei um violão e demorou um ano e meio até ele encontrar a madeira. Isso aconteceu dois anos antes do incêndio do Museu Nacional.
Uns cinco dias após o incêndio, o Davi me ligou para irmos lá recolher a madeira. Montamos um grupo para organizar, chamei o Vinícius, que chamou sua esposa na época; minha mulher que gosta de história entrou também, chamamos um cinegrafista e nomeamos esse grupo de “Fênix” para poder montar o projeto desses violões. A ideia inicial do Davi era fazer violões para poder vender para empresas e reverter o dinheiro da venda para a recuperação do Museu, mas eu fui tomado por esse ideal dele.
AeP: E essa história virou um documentário “Fênix, o voo de Davi”, que vem recebendo muitos prêmios…
Paulinho: Super premiado, já ganhou mais de 50 prêmios pelo mundo porque é um documentário metafórico, que narra uma tragédia. Conseguimos autorização do Iphan e do Museu para recolher algumas madeiras, o Davi fez dois violões e outros ajudantes dele fizeram um bandolim, que foi para o Hamilton de Holanda; uma viola de dez cordas ficou com o Almir Sater; um cavaquinho com a Nilze Carvalho; um violino com o Felipe Prazeres, que é da Orquestra Petrobrás, e os dois violões que estão comigo. Nós somos os padrinhos destes instrumentos que pertencem ao museu. Então eu faço essa turnê dos violões Fênix por conta disso tudo.
Antes do show, a gente exibe 15 minutos desse documentário porque o início dele é muito impressionante. Então quando eu entro, a plateia já está comovida por estar diante destes instrumentos. São duas madeiras sobreviventes transformadas em instrumento musical, que a partir daquele momento estão integradas a um show, que fala justamente sobre renovação. O meu repertório já era um pouco assim, já era um tema retórico meu como em “Tudo novo de novo”, “Lágrimas de diamantes” e “Tudo o que acontece de ruim é para melhorar”. É um tema que eu gosto, porque acho que a vida é assim mesmo, a gente também sofre incêndios, a gente tem perdas, despedidas, tragédias. Esses “incêndios” deixam a gente em cinzas às vezes, e a gente tem que saber lidar com eles porque a vida é feitas dessas recuperações, você não pode evitar essas tragédias. Não existe vida sem isso. Então você tem que aprender, a grande chave da vida é aprender a “sacudir a poeira e dar a volta por cima”.
AeP: No repertório desse show tem a música “A dor traz o presente”, com melodia de Pixinguinha. Como surgiu esse convite?
Paulinho: O neto dele, que se chama Marcelo, ficou responsável por todo o patrimônio musical do avô. Demorou muito tempo, eram muitas partituras, mas ao final de toda a verificação do material descobriram umas 60 partituras inéditas do Pixinguinha, dentre estudos que ele mesmo fazia para treinar, até músicas soltas. E o neto achou que algumas delas, em torno de 12, poderiam ganhar uma letra.
É mais fácil ou mais difícil compor quando já se tem a melodia?
Paulinho: São duas coisas diferentes. Eu fui escolhido para fazer uma canção, fiquei morrendo de medo, muito tempo pensando e consegui uma letra que achei super interessante. Eu me senti companheiro do Pixinguinha num bar para poder escrevê-la. É uma letra bem tradicional, não muito moderna. Mas eu faço os dois, eu boto música em cima de letra, letra em cima de música, faço os dois ao mesmo tempo, mas eu gosto mais de musicar uma letra. Embora eu faça junto quando é minha, começo com uma coisa que estou gostando no violão ou uma coisa que estou gostando de escrever, e daí começo a fazer para ver como os dois vão terminar.
Quando me mandam uma letra eu tenho que gostar muito dela, porque como eu escrevo, tem que ser algo que eu leia e pense “eu gostaria de ter escrito isso”. Eu tenho algumas canções com a Zélia Duncan, com o Carlos Rennó, então tem que ser boa.
Grandes nomes da música já gravaram canções suas. Qual é a sensação de ouvir suas letras em outras vozes e interpretações?
Paulinho: Eu sou muito metafórico. As minhas letras são muito metafóricas, eu não gosto de escrever alguma coisa que daqui a 20 anos a pessoa não vai entender, como uma gíria do momento. Eu vou no eterno. Daqui a 100 anos eu quero que a realidade possa encaixar dentro da minha metáfora. Acho que já faço as minhas letras sempre com essa noção de sentido muito aberto. “O que você quis dizer com aquela frase?” não importa, não é o sentido verdadeiro o que eu escrevo, o que eu escrevi tem um sentido para mim, mas eu escrevi para ter um sentido para você, então cabe a você dar um sentido.
Quando alguém canta, eu mesmo escuto com outros sentidos a partir da interpretação de quem está por trás. Bethânia já cantou música minha, Zizi Possi, Marina Lima, Elba Ramalho, Maria Rita, uma galera de responsa.
Para finalizar, você já se apresentou em Petrópolis muitas vezes. Nessas vindas você conseguiu conhecer um pouco da cidade?
Paulinho: Claro, já toquei no Quitandinha e a gente pede para vir um dia antes para aproveitar um pouco, mas dessa vez não deu. Eu adoro Petrópolis, a chegada à cidade com o Quitandinha à esquerda… Minha esposa vem de uma família que adora a história do período colonial, sabe tudo de José Bonifácio à Princesa Isabel, então eu também acabo participando e me emocionando com a paixão deles, acabo me apaixonando também.
Trazer esses violões para Petrópolis é muito especial. Eu tenho dois violões, um de cordas de aço e um de nylon. O Davi me falou que o de nylon tem uma parte que foi feita com uma madeira do quarto de dom Pedro II. As ruínas queimaram e foram para o chão, e ele foi recolhendo e anotando da onde vieram. Davi entrou no que restou desse quarto e achou essa madeira que é um pedaço do meu violão.