Os pés no chão, os olhos fechados, todo o corpo entregue aos rodopios que parecem que a farão flutuar diretamente para outra dimensão. Assim é Maria Bethânia no palco, como uma possibilidade de religação entre todos os universos: materiais, físicos, cósmicos, psíquicos, corpóreos. Sem falar de sua voz. Que voz! A cantora é pura sinestesia. Por isso, que sim, música é também perfume.
Música é Perfume (2005) é um documentário, do roteirista e músico francês Georges Gachot, sobre a cantora baiana de Santo Amaro da Purificação, a moça da voz grossa, irmã mais nova do monumental Caetano Veloso, que saiu da cidade pequena para dar sua voz, na completa escuridão, para a canção Carcará em um espetáculo de teatro e, a partir daí, nunca mais parou. O filme, que acompanha o trajeto da feitura do disco-show “Brasileirinho” da cantora, é também a tentativa de captar uma sensibilidade brasileira que, misturada, escapa às definições.
Pode-se observar que Música é Perfume é todo reunido através dessas experiências dos sentidos, ou então, do corpo sendo tomado ou levado para outro lugar. Essa percepção do diretor, que atravessa o filme, nos faz perceber com extremo cuidado, gentileza e profundidade, como que a música e seus pequenos fraseados melódicos do cancioneiro, fazem parte do nosso corpus cultural e, assim, de nossa experiência sensível e corpórea do mundo. Bethânia fala da música como perfume que nos toma e automaticamente nos remete a outro tempo, outra sensação, outra história, ou seja, nos desloca do presente e nos apresenta um outro, novo ou velho, mas diferente.
A produção da diferença via arte, é objeto de atenção: nos cheiros, na visão, no tato, nos gostos, nas lágrimas. Talvez, por isso, Maria Bethânia esteja encabeçando a obra, pois é ela quem eleva ao ponto máximo essa simbiose de elementos etéreos para dentro do nosso contato com a música. É como diz Gilberto Gil: “Bethânia é o resultado da fricção entre o tudo e o nada.” Aquilo que de uma melodia escondida, frágil, faz a mais potente das realizações de nossa nacionalidade, o que, segundo Chico Buarque, é um foco de esperança para um tipo de representação artística que, por vezes, é escondida por debaixo dos panos.
Se o filme erra é porque não é feito por um brasileiro. Por ser francês, Gachot não consegue diferenciar onde Bethânia se situa e o que ela representa. A praia do Rio, Santo Amaro, o subúrbio parecem a mesma coisa, e o filme, em alguns momentos, soa como algo voltado para os gringos. O que era preciso ser dito é que a música de Bethânia, apesar de vir de origem profundamente popular, não consegue chegar até essas camadas, tornando-se música de um público específico, intelectualizado, parcela representativa do compósito de nosso pensamento sobre nós mesmos. Sem essa percepção, a obra fica um bocado ingênua e quase se perde na idealização de um país que não é.
Música é Perfume, apesar disso, é um filme honesto de uma das maiores vozes de nosso país, que se não é tudo aquilo que queremos que ela seja, é muito mais do que conseguimos imaginar. Ao fim, percebemos que música é perfume, mas que os perfumes são excessivamente fugazes e que, em algum momento, as coisas precisam ou deveriam ser um pouco mais.
O documentário será exibido na próxima sexta-feira (10), às 19h, no Cine Humberto Mauro, no Centro de Cultura Raul de Leoni. A entrada é franca.
Luiz Antonio Ribeiro é dramaturgo e poeta, formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO – Univesidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente cursa Letras – Português/Literaturas.