A arte é um rito, e isso não se pode negar. E como todo rito, não se pode explicar. Que me perdoem os críticos mais preocupados com a forma, mas minha crítica hoje vai parecer um relato. Acabei de assistir Faroeste Caboclo e tive uma das experiências mais impressionantes com a arte. O filme acabou, as luzes apagaram e todos, digo, as 50, 60 pessoas que estavam na sala de cinema, ficaram imóveis, olhando os créditos e cantando, meio sussurrado, a canção de Renato Russo. Os poucos que ousaram levantar, logo pararam, voltaram aos seus lugares, ou ficaram em pé pelos nove minutos, como se fizessem uma oração. Se isso não é um ritual, se isso não é arte, nada mais é.
Sejamos pragmáticos: Faroeste Caboclo (2013), de René Sampaio, conta a história de João de Santo Cristo, que sai da pequena cidade nordestina, rumo à Brasília. Lá se envolve com as coisas mais perigosas – drogas e mulheres – no caso dele, uma paixão avassaladora por Maria Lúcia e uma relação familiar meio estranha, via tráfico de drogas, com o peruano Pablo. No entanto, Jeremias, um traficante local, conhece João e não quer deixar barata a ousadia de um rapaz pobre, negro e analfabeto.
Inspirado na música homônima de Renato Russo, líder da Legião Urbana, Faroeste Caboclo ousa a difícil tarefa de transposição da nossa epopeia agreste-faroeste para as grandes telas. Entre erros e acertos, o filme emociona.
O roteiro opta por escolhas realistas, ou hiper-realistas, tentando com a imagem captar a crueza das condições de vida de João, frente a uma vida dispendiosa de Maria Lucia. Apesar de não conseguir fugir de uma lógica dupla entre riqueza/pobreza, violência/afeto, a direção não deixa de tensionar, nem estetizar as relações duais. Sempre que imaginei o filme ao ouvir a música, imaginei mais como uma parábola, uma citação, um índice, e menos como uma mera “metáfora” da situação brasileira. Entretanto, sem conceber a trama como parábola, René Sampaio consegue ainda assim dar tons épicos a Faroeste Caboclo.
O que não se pode perder de vista é que a música é realmente um faroeste, ou seja, um proto-filme em que o mocinho, num lugar inóspito com regras próprias, precisa enfrentar tudo e todos. Fabrício Boliveira, João de Santo Cristo, percebe bem essa indicação e faz um personagem espetacular, com perfil dos grandes heróis das epopeias clássicas, ao mesmo tempo em que tem algo do faroeste, chegando até a remeter ao Django do Tarantino. Isso se amplia com o magnífico Jeremias, de Felipe Abib, uma das melhores construções de personagens dos últimos tempos. A sensação que fica dele é que aquela persona é quase um semi-deus, enviado para fazer valor ao destino de João, e seguir seus desígnios infernais.
Todos esses elementos interessantes, flutuantes, e até discutíveis, fazem de Faroeste Caboclo um filme marcante. Para alguns, pode até ser comum, para os fãs da canção, provavelmente será monumental, mas a verdade é que quem assistiu o filme, naquela sala de cinema, ao meu lado, assistiu a uma celebração, um ritual, uma ode a nossa história nacional e a esse personagem que também é um pouco de nós. Faroeste Caboclo é a odisseia de milhões de brasileiros, caboclos, ou quase, que passam a vida atrás de suas Maria Lucias, sua carpintaria, mas que quase sempre só encontram ao seu lado a violência, representada por uma brilhante e potente Winchester 22.
O filme está em cartaz no Top Cine Hipershopping ABC, com sessões às 15:00h / 17:00h / 19:00h / 21:00h. A classificação é 16 anos.
Luiz Antonio Ribeiro é dramaturgo e poeta, formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO – Univesidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente cursa Letras – Português/Literaturas.