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A viagem – via crucis em loop

Muito se fala sobre viagens, usa-se até em vão a famosa frase: “viajar é mudar a roupa da alma” para tentar traduzir o que significa esse deslocamento entre o espaço e o tempo que fazemos algumas vezes no decorrer da vida. No entanto, acho que poucos dimensionam ou conseguem dar a profundidade exata sobre o que é viajar. Creio que perdemos a capacidade de perceber que cada viagem é uma vida inteira e, assim, viajar é criar, fundar, plantar vida.

“A Viagem”, do trio Lana Wachowski, Tom Tykwer, Andy Wachowski, é sobre seis histórias que ocorrem em tempos diferentes que vão desde o século XIX, quando um advogado (Jim Sturgees) é enviado de barco para comprar escravos, até um futuro pós-apocalíptico, místico e reencantado, onde os homens, tanto os tribais como os chamados “visionários”, não possuem mais terra para viver. Entre eles, várias histórias se desenrolam no decorrer do século XX: na década de 30, um músico (Ben Whishaw) ajuda um velho compositor (Jim Broadbent) a continuar seu trabalho; na década de 70, uma jornalista (Halle Berry) descobre falhas e corrupção na construção de um reator nuclear; nos tempos atuais, um senhor (Jim Broadbent), dono de uma editora, é enviado pelo irmão a um asilo após ter sido jurado de morte por um de seus clientes; por fim, um pouco depois de nossos tempos, na “Nova Seul”, um clone criado para trabalhar em lanchonetes (Donna Bae) descobre o que é feito com suas “irmãs” após a morte e, salva por um membro da chamada “União”, é levada a liderar uma revolução para o fim daquela opressão.

Parecem muitas histórias com muitos assuntos divergentes, mas esse excesso, esse acúmulo de informações e narrativas, além de demandar uma atenção extra do espectador, incomum no cinema atual, faz com que reflitamos sobre o que chamo de “passagem dos tempos”. Estamos tão atentos aos dramas no universo micro que perdemos a capacidade de perceber aquilo que é pequeno, mas que compõe toda nossa história como se fôssemos, como diz Benjamin, “um anjo de costas para os tempos que tenta frear o movimento dessa máquina”.

Apesar de reflexivo, o filme é uma excelente obra de entretenimento, de bela fotografia e roteiro inventivo, baseado na obra “Cloud Atlas” de David Mitchell. Claramente feito para 3D, a obra não perde o encanto no 2D e nem deixa de transmitir a força e a violência nas cenas de ação, perseguição e aventura, nem deixa de emocionar nos momentos singelos, em slow motion, em que se pede para perceber cada detalhe dos objetos que perpassam nossos olhos.

Ao fim, o que fica é a sensação de que nossa vida sempre reconfigura a imagem da via crucis cristã. Como se tivéssemos de atravessar uma série, um evento de experiências que testam nossa força, nossa vitalidade e vontade de viver, mas que no fim apresentam, se não uma redenção, pelo menos um conforto para nossos corpos e mentes cansados. Isso fica claro quando se vê os atores representando muitos e muitos personagens em várias histórias, às vezes como protagonistas, às vezes como coadjuvantes, mas sempre fazendo parte da história de todos nós.

Nossa vida, nossa trama, no acúmulo dos tempos é um loop eterno por sobre essa via crucis e, no final, “A Viagem” é o caminho que temos de percorrer para chegar até esse cantinho último que podemos chamar de mundo.

“A viagem” está em cartaz no Cine Bauhaus, com sessões às 14h; 17h15 e 20h15. A classificação é 16 anos.

Luiz Antonio Ribeiro é dramaturgo e poeta, formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO – Univesidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente cursa Letras – Português/Literaturas.

 

 

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