por Daniel Martinez de Oliveira
Em 11 de janeiro de 2018, completaram-se sete anos desde que a natureza golpeou duramente a nossa região. Sete anos atrás, um trauma enorme se instalou e ficou na memória de muita gente. Muitos foram os que enlouqueceram depois daquela tragédia. Outros tantos se tornaram mais “duros” em relação à vida e à sua visão sobre a existência.
Como morador da região serrana desde o nascimento, sempre estive acostumado ao período das chuvas, geralmente de novembro a março. E às notícias de alagamentos, enchentes e deslizamentos de terra. Na maioria das vezes, casos isolados, poucas vezes com óbitos, ainda que sempre assustadores e sentidos com muita angústia.
Desde novo, estive habituado à acentuada estação chuvosa. Fui acostumado a viver em uma cidade que cresceu sem um ordenamento urbano adequado, aos morros cheios de casas, aos rios estrangulados, entre outros aspectos comuns às urbanizações da serra fluminense. Entretanto, nunca imaginei ver as cenas que vi: as cenas mais tristes que presenciei em toda a minha vida. E, ainda hoje, as cicatrizes podem ser vistas, com facilidade, em muitas das áreas atingidas.
Na semana da tragédia, eu tinha acabado de me mudar de Nova Friburgo para Maricá, na Região dos Lagos. Só eu sei pela epopeia que passei para encontrar a minha filha (com cinco meses), minha enteada e minha esposa (à época). Três dias para conseguir falar com a minha mãe, minha avó e meus tios. Dias para ver meus irmãos. E uma semana ouvindo sirenes e helicópteros 24 horas por dia. Os caminhões e as caminhonetes carregados de corpos. A lama, a água suja, as pessoas perdidas, o boato sobre uma represa que teria estourado…
Esse é o âmbito pessoal meu, e tenho a oportunidade de usar este canal para me expressar. Mas somente cada pessoa, individualmente, sabe pelo que passou. E muitas e muitas vivenciaram episódios infinitamente mais dramáticos e mais dolorosos que o meu.
Os relatos nunca se esgotam. A memória nunca se exaure de recolher narrativas de cada canto, de ouvir as palavras acompanhadas de lágrimas, soluços… Das pessoas que perderam casas, carros e bens. Das pessoas que perderam seus animais. Daqueles que perderam um parente. E daqueles que simplesmente perderam toda a família e tudo o que tinham.
Não podemos culpar somente a natureza, claro. Ocupações, vendas, aquisições, autorizações e alvarás para construção. Desorganização e falta de ordenamento dos bairros, entre outros problemas estruturais e políticos também devem fazer parte dessa conta. Entretanto, muitas das áreas atingidas jamais haviam sofrido, segundo a história e a memória coletiva, tamanha intensidade de chuvas.
Em seguida à catástrofe natural, veio a catástrofe política. Não precisamos dar nomes aos bois. Ou melhor, aos abutres que, da noite para o dia, se organizaram para saquear as verbas emergenciais que chegavam do governo federal. Sobre as carcaças das áreas atingidas, debruçaram-se e sugaram os únicos recursos que chegavam em auxílio às cidades atingidas.
Centenas de corpos (pilhas) que passavam pelos caminhões, eram enfileiradas para reconhecimento e depois depositadas em caixões. Velório coletivo. Caminhões frigoríficos que guardavam os corpos que ninguém havia reconhecido. E todas as pessoas que desapareceram… Os corpos insepultos, para sempre perdidos em meio ao caos.
Os milhares, milhões de reais, também desaparecidos, para nunca mais regressar aos necessitados. Sepultados sob a lama. Enterrados com a pá da ganância. A repugnante ganância que retirou dos sobreviventes o direito de reconstruir sua vida.
São sete anos que se fecham. Sete ciclos. Sete vezes em que a data de 11 de janeiro causa náuseas. Pela memória dos mortos. Pela recordação das cenas horríveis. E pelo nó na garganta, um nó em uma garganta engasgada com o lamaçal da rapina de pessoas inescrupulosas que, mesmo na desgraça total, ainda encontraram espaço para roubar das vítimas.
Sei que palavras fortes não trarão de volta os bairros que desapareceram. Palavras efusivas não trarão de volta as pessoas que pereceram. Mas as palavras podem trazer conforto. A atenção de uma pessoa pode trazer alívio. Por isso a coluna de hoje é em homenagem às vítimas da tragédia de 2011. Em especial às vítimas que ficaram, para lembrarem, para sempre, daquelas que não tiveram a mesma sorte.
(Foto: Vale do Cuiabá após a forte chuva de 2011)
Daniel é antropólogo e historiador. Trabalha como professor universitário e é servidor do Instituto Brasileiro de Museus. Atualmente administra o Palácio Rio Negro (IBRAM). Mora em Petrópolis desde 2014. Também escreve contos e poesias.
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