por Daniel Martinez de Oliveira
O passado é uma referência e, por intermédio da experiência e da memória, guia as nossas ações. Mas, assim como o tempo, a história, a cultura, as relações sociais e o conhecimento são dinâmicos e se encontram intensamente influenciados pela passagem de um presente que, a cada segundo, se renova. Pode ser que a vida que levávamos até há alguns meses não volte mais e que hábitos que eram rotineiros possam levar tempo para retornar, ou mesmo venham a ser substituídos. A Covid-19, provavelmente, veio para ficar e, com ela, surgirão novas rotinas, novos comportamentos e outras formas de contato social.
Como outras pragas do passado, a pandemia que estamos vivenciando está longe de ser um fenômeno simples e corriqueiro. Neste caso, não se trata de uma gripe sazonal, e não é como um surto (hoje em dia) controlável de catapora ou de sarampo. Isso explica por que medidas mais efusivas vêm sendo tomadas, como é o caso da quarentena, do isolamento social e do bloqueio total ou “lockdown”.
Como já foi comentado em outra oportunidade nesta coluna, estamos assistindo a alterações repentinas, por exemplo, nas relações familiares, já que filhos têm permanecido mais tempo com seus pais e responsáveis, o que tem acarretado adaptações duvidosas da rotina escolar, ou mesmo a sua suspensão total. Mudanças também têm sido verificadas em relação ao campo do trabalho, com a ampliação do teletrabalho ou “home office”, a partir do qual o trabalhador muitas vezes não vê garantidos seus direitos e horários, devido a mesclas indefinidas entre os momentos de lazer, entretenimento, alimentação e descanso com as horas, já desregradas, de atividade laboral.
Entretanto, não venho aqui dizer a você que o mundo será completamente outro após a pandemia do novo coronavírus. Tampouco venho defender que haverá uma revolução nos comportamentos, ou que a humanidade sairá dela melhor do que entrou. Afinal, não é possível à História e à Antropologia preverem o futuro, o que não quer dizer que não possamos presumir algumas circunstâncias a partir da consideração de nuances que se projetam adiante.
É plausível supor, por exemplo, que os contatos físicos entre pessoas de fora do âmbito doméstico venham a ser reduzidos ou anulados em vários momentos, e que essa tendência possa se efetivar por longo tempo ou se torne um hábito mais aceitável que a distribuição de beijos, abraços e apertos de mãos entre desconhecidos. O campo da afetividade é, nesse caso, um dos primeiros a se abalar, e o tocar nas outras pessoas pode vir a se firmar como uma espécie de tabu durante uma época.
Ligadas a essa esfera da interação social, estão as práticas corporais de higiene, que se estendem aos hábitos relacionados aos cuidados íntimos e individuais, como a lavagem das mãos, o cuidado com as compras e as roupas que vêm da rua, o uso de máscaras e álcool em gel e a ênfase na noção de contaminação dos espaços públicos. Essas práticas e atitudes podem se acentuar por longos períodos e virem a ser adotadas por muitas pessoas como a conduta mais correta em uma nova normalidade.
Ultrapassando a esfera dos indivíduos e suas interações e alcançando a da política em nível macro, pode ser que as condições impostas por esta pandemia nos façam repensar e pressionar, junto ao Estado e às suas instituições, ações em prol de melhorias na área da saúde e do saneamento. Pode ser que o choque de realidade que estamos vivenciando leve muitos governos, estados e elites políticas de certos países a repensar a relação entre crescimento econômico, regulação pelo mercado, relações de trabalho, ganho, renda e lucro a níveis mais humanizados e menos numerais e impessoais, visto que cada morte tem por trás de si um rosto, uma família, uma vizinhança, amigos e toda uma rede de relações sociais.
Uma pandemia, como a que encaramos neste momento, traz o potencial para muitas mudanças. Como disse anteriormente, não creio que serão grandes mudanças estruturais, mas mudanças pontuais que, ainda assim, poderão ter grande importância. Nós, os seres humanos, somos resilientes, nos organizamos de forma a enfrentar o meio em que vivemos desde nossa remota origem. Nunca sucumbimos, enquanto espécie, diante das doenças que nos assolaram; pelo contrário, sempre seguimos em frente, reinventando nossas formas de encarar o mundo.
Isso não significa que devamos esquecer que também perdemos muito, sempre. Muitos dentre nós ficaram para trás, foram levados por catástrofes naturais, epidemias, guerras, bem como as sociedades e civilizações que encontraram seu fim. Por isso mesmo, devemos recordar, sempre, que só pudemos chegar até aqui porque muitos vieram antes de nós e que só existiremos no futuro porque muitos virão depois. História e memória são primordiais nesta relação entre passado e presente, em que nos é exigido não obliterar ou omitir, porém nos é permitido evocar nossas vitórias e derrotas e, por meio delas, deduzir verdadeiras lições para o futuro.
Daniel é antropólogo, historiador e escritor.
As opiniões contidas não representam a opinião do site; a responsabilidade é do autor da publicação.
Mais em: