por Daniel Martinez de Oliveira
Vivemos tempos de incertezas sobre muitas de nossas necessidades e vontades. Buscamos explicações, orientações e informações que nos guiem nessas águas turbulentas que são a vida moderna que, agora, nos desconcerta com uma enorme crise sanitária, para nós, sem precedentes. Não é um momento fácil para ninguém.
Todos precisamos do básico enquanto seres humanos, necessidades que vão além de nos alimentar e descansar, por exemplo. Também sentimos o desejo de fazer parte de uma comunidade, da mesma maneira que ansiamos por segurança. Segurança, não somente no sentido mais pragmático, de estarmos protegidos contra malefícios que nos podem ser causados, mas também com a conotação de um “chão firme” no qual pisar, uma base de confiança e solidez, de convicção.
Somos seres tendentes à busca por certezas e nossas crenças nos ajudam a encarar essa falta de fixidez no mundo. Tendemos a desejar que as coisas estejam sob nosso controle e, quando escapam a ele, muitas vezes as relegamos às forças e entidades sobre-humanas, a seres e forças espirituais e a deuses. Isso é comum e autêntico, uma vez que o religioso é um dos possíveis conhecimentos que desenvolvemos e aos quais temos acesso enquanto participantes de uma sociedade e de uma cultura.
Até há alguns séculos, as sociedades e comunidades ocidentais definiam e aceitavam, predominantemente, a origem das doenças e das epidemias a partir de explicações religiosas ou míticas. Após o Renascimento e a posterior chegada do Iluminismo, o desenvolvimento do método científico e as descobertas e aprimoramentos técnicos e a predominância do racionalismo no plano da educação, essa postura mudou, tanto no sentido da hegemonia em torno do pensamento, quanto em relação à sua influência no senso comum.
Um dos reflexos dessa racionalização no plano do senso comum é que hoje tendemos a enxergar nos processos políticos a responsabilidade de grandes eventos e fenômenos, como forma de expressar esse algo maior que está acima da ação individual. Mesmo que muitos de nós possamos nos apoiar nas explicações religiosas e míticas, hoje é muito comum que, diante da sensação de falta de controle, acionemos, ainda, outros vetores de nosso imaginário.
De fato, as epidemias são fenômenos que se iniciam sem sabermos bem como e onde, e que fogem do nosso controle enquanto indivíduos. Buscamos meios de entender o que está ocorrendo, de ter um mínimo de controle sobre o que está ao nosso redor, e é aí que muitas pessoas se apegam a teorias conspiratórias. Estas são fechadas em si mesmas e difíceis de ser combatidas, porque são exclusivistas, rechaçam o que não se encaixa em suas premissas e se tornam irrefutáveis por natureza. Elas dão, até certo ponto, a certeza da crença religiosa, porém travestida de racionalismo pseudocientífico.
A Ciência, por sua vez, trabalha com probabilidades, possibilidades, e aponta caminhos sobre “verdades provisórias”, uma vez que nela não há certezas perenes, mas hipóteses e teorias, que são refutáveis em caso de serem apresentadas repetidas evidências suficientemente fortes para superá-las. A Ciência não está baseada em dogmas, portanto. Por mais que se estruture em teorias e paradigmas, ela avança por meio de “verdades” que se sustentam, grosso modo, sobre as bases da observação de fatos, da formulação de hipóteses, da experimentação e descrição e da interpretação dos resultados, com uma conclusão que será avalizada ou não por uma comunidade de especialistas em determinada área. E pode corroborar para elaboração de uma teoria, que é uma “verdade provisória” mais robusta e mais difícil de ser superada, coloquemos assim.
Por outro lado, a Ciência envolve ação humana e seu desenvolvimento está sujeito às interferências da política, bem como reflete um momento histórico, uma realidade social e cultural. A ciência também avança a partir de interesses, claro. O fazer científico não é neutro, mesmo do ponto de vista das escolhas e de certas inclinações teóricas. De qualquer modo, o conhecimento científico está sempre aberto à crítica e à contestação, desde que estas estejam calcadas, por sua vez, no mesmo rigoroso método científico.
A questão em tela é que estamos lutando contra um ser microscópico, que não se vê, não se toca, só se ouve falar dele. Mas pode-se viver a doença que ele provoca, ou encarar a morte que ele causa. Este é, talvez, o “experimento” empírico que abre os olhos de muitas pessoas. Entretanto, muitas vezes damos asas à imaginação e nossa insegurança interior nos leva a acreditar em teorias conspiratórias. Essas “teorias” podem ser divertidas e interessantes, até certo ponto, mas podem se tornar desastrosas quando aderidas em massa. Ou pior, quando se tornam política de algum governo, ocasião em que podem tomar proporções catastróficas.
O negacionismo, como um dos aspectos dessas “teorias”, pode ter várias raízes, desde a forma como se expressa o medo, até o descaso com que se trata a vida de outras pessoas. Esta ideia conspiratória se infiltra a partir dessas fragilidades e se coaduna com o anseio de uma explicação para fatos e acontecimentos imponderáveis.
De sua parte, a explicação religiosa – que não deve ser contraposta ao pensamento científico, dado que se trata de modos distintos de conhecimento – pode ser importante e levar alívio, segurança e unidade às pessoas. Mas é imprescindível que as ideias religiosas permaneçam fora das decisões no campo das políticas públicas, e não devem, de forma alguma, tomar a dianteira nas deliberações que envolvam necessidades técnicas para uma sociedade pluriétnica, plurirreligiosa e cujo Estado é oficialmente laico. Ou seja, nenhuma explicação religiosa deve ser tratada por este Estado como hegemônica sobre as outras, nem sobre o conhecimento técnico e científico.
Este momento é, portanto, o de ouvir os especialistas e os cientistas, seguir suas orientações e tratar com seriedade as pesquisas, dentro do seu ritmo. O senso comum e o pensamento religioso continuarão a existir em suas esferas legítimas e seguirão sendo necessários para a reprodução social de comunidades e sociedades. Mas, neste instante, precisamos, urgentemente, combater, desautorizar e retirar o “palco”, ou seja, dar menos ouvidos às teorias da conspiração e enfatizar nosso apoio à Ciência e aos cientistas.
Daniel é antropólogo, historiador e escritor.
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